quinta-feira, julho 30

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Eu me perguntei se ela chorava. Se por trás daquelas palavras cruas, sinceras, inocentes, ela chorava e não sabia o que dizer. Se aquilo estava guardado há tanto que as palavras aglomeravam-se, sem sentido, e se ela tinha que reviver sua dor tentando organizá-las dum modo inteligível. Eu quis dizer que a entendia, que não ligava de interpretar suas palavras, tentar entendê-las, poupá-la daquilo tudo. Me perguntei se ela chorava, e se as lágrimas caíam tão delicadas por seu rosto de boneca, os olhos grandes que tanto me fascinaram, úmidos, tristes, olhando sem rumo por tudo aquilo que a lembrava do motivo da sua dor. Se as lágrimas percorriam tão cruéis - e ao mesmo tempo doces, numa sinceridade tranquilizante, de um ódio tão ingênuo que era quase amável - o mesmo caminho que eu tanto desejara percorrer. Se feriam os olhos, as bochechas, o nariz delicado e ligeiramente retroussé. Se morriam na boca, invadindo aqueles lábios rosados e pequeninos, agora curvados em um sorriso triste, me fazendo inveja, me fazendo sentir junto dela. Me perguntava o que dizer, se eu conseguiria mentir pra ela com minhas promessas otimistas, com falsas ilusões de que ia ficar tudo bem. Ao invés disso, de iludir a ambas, eu fui sincera. Seca, ácida, quase cruel. E me perguntei se minhas palavras feriram ainda mais toda aquela delicadeza não mais imaculada, se seus olhinhos molhados se alegraram ou se foi mais uma das muitas coisas ruins que já ouviu. E aí eu desejei não ter dito nada, não ter pensado nada - só quis ter meus braços ao redor de tudo aquilo que ela é, sua imperfeição complementando a minha e seu sorriso triste me mostrando a beleza no seu silêncio e na sua confusão.

terça-feira, dezembro 16

Calmaria

“Quem conhece a tempestade, enjoa na calmaria.”

Era assim como ela se imaginava naquele cenário monótono, sem cor, sem vida. Sem graça. Ela sorria, os dentes amarelados refletindo cada um daqueles rostos sem expressão. Os olhos pesados como globos na sua palidez, o cabelo caído em leque, desviando a atenção dos seus gestos inseguros e seqüenciais. Na boca, um cigarro pela metade, as cinzas caindo pela roupa recém-passada, o filtro escuro em contraste com os lábios sem cor. Ao seu lado, Laura. O rosto bronzeado com o mesmo desinteresse, emoldurado pelos cabelos castanhos caindo em cascata pelas costas esguias.

Na mesa, ao lado delas, meia garrafa de vodka barata, dessas que se compra em qualquer pocilga. E nos rostos, a expressão de quem já viu de tudo, mas espera ainda mais. O telefone toca. O relógio de pulso digital indicava seis da tarde, mas podia-se perceber sem dificuldades a maquiagem pesada brilhando junto ao Sol poente. Frases entrecortadas, um sorriso de lado. Já era o bastante. Levantaram-se em sincronia, o dinheiro amassado espalhado pela mesa, sob o cinzeiro transbordando. O táxi já as esperava, e as levou pra o primeiro ponto de escape que encontraram, uma festa qualquer.

Não conheciam ninguém. No auge dos seus dezessete anos, entretanto, isto não era problema. Desceram na entrada, como se realmente quisessem saber das pessoas que encontrariam ali. Aos primeiros passos, uma dose de tequila, outra e mais outra. E apresentaram-se, os mesmo sorrisos de conveniência se fazendo ver. Pedros, Gabriéis, Alexandres, Bernardos, Vítors...: os olhos amendoados de Laura se perdiam em cada um. As doses já bem acentuadas, e um novo sorriso, misto de Eva e Maria, enfeitava cada centímetro de seu rosto talhado a mão. Júlia permanecia séria, embora, no intimo, estivesse imaginando coisas sobre cada um dos personagens de sua comédia particular. Estampava-se nela a repreensão, apesar dos olhos agora doces brilharem, receptivos.

- É assim que se faz a vida! Ultrapassando todo o entendimento! – A voz de Laura ecoava, num timbre agudo e melodioso. Mal sabia ela que, por trás das palavras dadaístas de Lispector, havia um significado que só mais tarde viria a entender. Afinal, parafraseando-a com a mesma desenvoltura da protagonista, “os fatos são sonoros. O que importa são os silêncios por trás deles.” Silêncio este que Laura ainda não estava pronta ou disposta a escutar.

- Mas quem quer entender? – Exclamou Júlia, a postura mais despreocupada, um cigarro enfeitando os dedos finos, o esmalte vermelho descascando aos poucos. – A gente chegou num ponto em que a conseqüência é a razão. E é essa a graça. – Se ela fazia noção do que dizia? Não. Mas de alguma forma, sentia aquilo falando em seu lugar. E gostava. Do mesmo jeito que gostava quando, ao fechar os olhos, a única coisa que conseguia fazer era rir. Mas odiava o silêncio. Não o silêncio propriamente dito, pois a música contagiava cada parte de si; ela odiava o silêncio que roubava a cena quando olhava ao seu redor e percebia toda a atração infundada, como toda atração deve ser, entre tudo e todos. Ela não era assim. Retia-se ao seu imaginário, enquanto perdia-se em mais uma garrafa de cerveja quente.

- A graça é só perceber que teve graça em lembrança. – Os olhos castanhos de Laura encontraram os amarelados de Júlia, e sorrisos que dispensam palavras realçaram seus lábios rosados, desses que é quase impossível não sentir vontade de tomá-los por nossos em beijos sem fim. – No fim, não faz diferença. – A voz rouca de Júlia se fez ouvir no ruído desagradável que era a juventude.

sexta-feira, setembro 26

Sobre cortinas puídas

"Perdi-me dentro de mim"

Quando me fui, já não era mais eu. Já era tarde, e as poucas luzes ainda acesas na cidade iluminavam todos aqueles rostos de uma forma estranha, mas que nos davam gamas de cores que não enxergaríamos sem toda a escuridão. Éramos, na nossa inocência, donos das sete cores do arco-íris nos nossos olhos cansados, pupilas dilatadas e o foco no horizonte, que só fazia se afastar de nós a cada minuto apressado que só fazíamos desperdiçar. As luzes dançavam, nós telas brancas, em um ritmo amargo, jogando suas flores primaveris nos nossos corpos frágeis, que a chuva fez questão de lavar. Eu, assim como os outros, tinha meus olhos coloridos voltados para um horizonte que há muito eu parei de ver. Um Horizonte tão distante que me fazia andar, sem rumo, até que meus pés fossem longe demais, tentando descobrir até onde longe demais pode ir.

“porque eu era labirinto”

Sentamos, observando desfocados o último ônibus da noite passar diante de nós, olhando-nos tal qual pessoas olham um teatro em ruínas – as cortinas já estão puídas, mas ainda se sentem os espetáculos dançando, solenes, as valsas de palmas que outrora irromperam dali. Encaravam-nos no sinal, se perguntando se escondíamos palhaços, mágicos, bailarinas ou domadores de feras por debaixo da nossa própria cortina velha. E nós, alheios a tudo aquilo, nos observamos em nossas multicores, sorrindo sem ter motivo para sorrir. Me voltei ao Horizonte, no rosto os olhos de quem não parece ligar. Mas eu ligava. E quando voltou seus olhos foscos para mim, eu senti as luzes que antes me iluminavam se apagando, eu de repente vulto, a escuridão das cores fundidas percorrendo, vadias, cada esquina, rua e avenida de mim.

“E hoje, quando me sinto”

Me levantei, corpo parecendo mais pesado do que conseguia suportar. Olhei ao redor, falsos olhos de quem quer encontrar um caminho, propósito ou causa a qual se aprisionar. Andei, seguindo o sentido das luzes, até que todos nós estivéssemos diante de algo decadente o suficiente para nós. Não foi difícil. A cidade à noite é tentadora, e basta escolher a causa mais conveniente para encontrar um motivo para continuar perdido. Enquanto pediam uma dose, me dirigi ao banheiro. Não havia luz, mas pude me encarar no espelho. E eu, cara lavada, olhos vermelhos, não me reconheci. Não usava maquiagem, mas ainda assim, havia algo borrado, escorrendo junto às gotas de chuva pelo rosto sem expressão. Rosto que me era estranho, antes focado, agora olhos distantes me mostrando mais do que conseguia lembrar de mim.

“é com saudade de mim.”

Ainda estavam todos lá, do mesmo jeito que os deixei. As garrafas, no entanto, estavam vazias. Em nós, as cortinas já se despedaçavam, e cada confissão nos revelava o palhaço, mágico e domador que ofuscamos com as luzes da cidade. Nossos olhos já não as refletiam mais. Refletiam somente aquilo que tentamos esconder, buscando desesperados a escuridão de outros olhos, outros espetáculos para se entregar. Mas eu não queria me entregar. Levantei-me, acabei com meu copo e atirei alguns trocados na mesa. E junto às moedas, deixei também minhas luzes, minha cortina puída, meu espetáculo já não tão mais silencioso para trás. Deixei o Horizonte, deixei a parte podre de mim. Me deixei. E, alguns passos depois, me quis de novo. Assim, podre como sou. Parte cortina, parte bailarina. Mas eu não voltei para me resgatar. Quando me fui, já não era mais eu.



Era prum concurso de redação, mas acabou que nem mandei... o poema é do Mário de Sá Carneiro, dá pra ver o integral aqui. :)